A ideia de que o céu é um espaço privilegiado, lugar da perfeição e depósito de sonhos e esperanças das pessoas, é tão antiga quanto se pode imaginar. Não se sabe ao certo quando e de que maneira essa noção apareceu e se instalou. Mas podemos tomar como certa a generalização da ideia de que o céu é um lugar muito bom, para onde as pessoas vão quando estão muito contentes, ou quando vivem prazeres extraordinários. Mais ainda: após a morte, é para lá que vão os felizes e aqueles de vida correta e bem-comportada.
Vinculado a esta idéia, o céu também já foi considerado o espaço da perfeição, onde tudo era inalterável: parece ser sempre do mesmo modo, sempre igual a si mesmo e, por isso, perfeito. Com esse aparato básico, pode-se compreender a longuíssima vigência da crença no governo do mundo pelos astros. A Astrologia sempre esteve fundada num princípio muito simples: o que é permanente, perfeito, dirige o transitório, imperfeito. Daí em diante, o passo é imediato: os astros governam os acontecimentos da Terra, a vida dos homens.
O peso dessas crenças na nossa cultura é muito maior do que pensamos ordinariamente. O próprio vocabulário revela isso em expressões de uso cotidiano. A palavra “desejar” tem sua origem no verbo latino desidero, cujo radical é sidus, estrela, para os latinos. Desta palavra também dependem diversos outros verbos de uso corrente, como “considerar”, indicando que, em algum momento do nosso passado, “considerar” era algo que se supunha fazer com as estrelas.
A Astrologia sempre foi um saber vigoroso que seduzia os homens. Na sua prática, ou seja, no registro e na análise dos movimentos dos corpos celestes, sempre lançou mão de conhecimentos também úteis em outros campos da atividade dos homens, como na Geometria. Com isso, essa parte instrumental da interpretação dos céus – saber o posicionamento dos astros – ganhou notável projeção e acabou por se identificar com outra palavra de grande sucesso nas línguas modernas, designando um conhecimento distinto: Astronomia.
Ciência X 'Futurologia'
Porém, a diferenciação entre uma prática e a outra levou muito tempo para acontecer. A separação entre os significados de “Astrologia” e de “Astronomia” foi lenta ao longo dos séculos XVI e XVII, e na Época das Luzes, já estavam estabelecidos dois vocábulos distintos para essas duas práticas celestes. A primeira se referia ao conhecimento do futuro e fornecia uma explicação para os acontecimentos presentes do mundo social e natural; a segunda tratava do estudo dos próprios astros, seus movimentos e sua dinâmica.
A crença nas influências celestes era tão grande que a própria formação universitária dos médicos, até o século XVIII, incluía vastos estudos de Astrologia, e o seu papel na diagnose era da maior importância. Por exemplo, a obra do doutor João Ferreira da Rosa, médico que se dedicou a estudar uma infecção contagiosa em Pernambuco em 1694, começa com considerações acerca dos eclipses e da disposição dos planetas, que teriam aberto caminho ao contágio. Trata-se do primeiro registro de uma infecção de febre amarela no Brasil, que teria começado em 1685 e perdurou por mais de uma década.
Mas se entre os médicos o prestígio desta prática sempre foi enorme, nem todos os grupos sociais se comportavam da mesma forma, durante o mesmo tempo, com relação a ela. Os religiosos, sérios e severos advogados dos céus, aceitavam as conclusões da Astrologia, mas sempre procuraram impor limites às previsões: nada poderia ser dito que pusesse em xeque a onipotência divina; a ciência dos céus não poderia nunca emitir juízos definitivos sobre acontecimentos que dependiam das ações dos homens – estes deveriam dispor de sua liberdade de escolha.
Então, uma importante distinção acabou aparecendo: a Astrologia se dividiu em Judiciária – aquela que emite juízos sobre as coisas – e Natural. A primeira, nefasta, mentirosa, embusteira etc. A segunda, inocente, útil e importante para o conhecimento do mundo. Pela Judiciária, os astrólogos diriam o que vai inevitavelmente ocorrer; pela Natural, eles diziam o que provavelmente vai ocorrer.
A distinção acabou por tornar aceitável para os homens de Deus a ação do astrólogo nas cidades, cortes e palácios, onde suas previsões se apresentavam mais como prognósticos do que como vaticínios. A eles cabia dizer a previsão meteorológica do ano, interpretar o significado de um eclipse ou da passagem de um cometa; dizer o destino provável de um recém-nascido, o sucesso de um matrimônio, prever a descendência de poderosos. Por exemplo, no ano anterior à batalha em que morreu D. Sebastião (1554-1578), rei de Portugal, no norte da África, um grande e claro cometa apareceu nos céus e foi visto em todo o mundo. Sabedores dos preparativos do monarca português, astrólogos adiantaram o prognóstico ruim da perda do governo luso ainda em 1577. Ignorando as previsões, o jovem rei foi ao combate, perdeu a batalha e a vida, e o cometa ficou conhecido como “o sebástico”, ganhando o nome daquele que não respeitou as previsões dos astrólogos.
Ridicularizados desde o século XVI
Se o prestígio dos astrólogos era enorme, nunca foi unânime. Ainda no início do século XVI, o médico François Rabelais (1494-1553) publicava prognósticos astrológicos jocosos em Paris, nos quais as previsões eram ridicularizadas. O doutor Rabelais previa coisas óbvias usando o linguajar dos conhecedores dos céus: o inverno seria frio e o verão seria quente, por exemplo.
Aqueles que ridicularizavam o conhecimento astrológico acabavam por fazer par com sisudos matemáticos que rejeitavam a Astrologia como coisa vã e de pouco uso, como o doutor Pedro Nunes (1502-1578), professor de Coimbra e cosmógrafo-mor da corte portuguesa. O início do século XVII, aliás, testemunhou o grande prestígio dos astrólogos na política europeia. Praticamente não havia grande monarca do Velho Mundo que não dispusesse de um matemático para lhe fazer previsões. Entre estes, Johannes Kepler (1571-1630), na corte do imperador em Viena, e Galileu Galilei (1564-1642), na do grão-duque da Toscana, em Florença. Até mesmo o Vaticano dispunha de seus astrólogos para as previsões de que necessitava, embora diversos papas tivessem emitido bulas contra a Judiciária, que atentava contra a onipotência divina e contra o livre-arbítrio.
Porém, ao longo do século XVII surgiram várias interrogações acerca das maneiras como os astros poderiam interferir na vida dos homens. Afinal, nesse século os homens acabaram por perceber que uma estrela é coisa que está muito longe, mas muito longe da Terra, e pensar que seu posicionamento possa determinar algo num lugar tão distante não é ideia trivial. Certamente, algo deveria sair da estrela e viajar até a Terra levando a capacidade de interferir na vida humana.
A crença no governo do mundo pelos astros pressupunha um cosmo pequeno no qual suas partes estariam organicamente ligadas entre si, de tal forma que uma alteração em uma delas repercutiria imediatamente nas demais. O mundo era um todo orgânico e feito exclusivamente para nós, os ocupantes do centro da vida na Terra.
Outros mundos
Por outro lado, na segunda metade do século XVII, diversos estudiosos aventavam seriamente a hipótese da existência de outros mundos, e isso mostrava a mudança da pauta das discussões, das preocupações daqueles que estudavam o céu. De fato, o mundo se abria, e ainda que os homens de saber usassem o mesmo vocabulário de épocas anteriores, suas ideias já eram bastante diferentes, suas crenças já não eram mais as mesmas.
Nesse tempo, como expressão do mal-estar astrológico, a Europa assistiu à publicação de uma série de livros que questionavam diretamente as antiquíssimas crenças no governo do mundo pelos astros: Fontenelle (1657-1757) publicou suaHistória dos Oráculos, em franco diálogo com os antigos gregos, e Pierre Bayle (1647-1706), seus Pensamentos diversos sobre o Cometa. As duas obras tiveram grande repercussão, e as ideias expostas serviram para acentuar a obsolescência da Astrologia e o ceticismo cada vez mais generalizado quanto às influências celestes.
A própria ideia da ação à distância, tão cara aos astrólogos, ganhou expressão precisa e definida com a obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton (1642-1727). Ainda que se aceitasse que um corpo distante pudesse interferir em outro, isso não poderia mais ser feito com base em crenças vagas e em raciocínios prováveis.
A enorme expansão das dimensões do mundo ocorrida ao longo do século XVI não foi relativa apenas à geografia da Terra e da superfície habitada pelos europeus e seus descendentes; ela foi também celeste. O mundo fechado e pequeno em que os homens acreditavam viver era perfeitamente compatível com a crença no governo dos astros; mas aquele outro mundo que emergia em meados do século XVI, aberto, amplo e infinitamente povoado de estrelas e de planetas, não se ajustava mais à noção de que os acontecimentos terrenos fossem dirigidos pelas estrelas.
A própria ideia dos céus como espaço da perfeição acabou perdendo seu significado físico. Os homens que são salvos por sua vida exemplar, ou pela livre e não motivada vontade de Deus, não se reúnem mais num lugar do mundo, numa parte privilegiada. A perfeição deixou de estar em um espaço material. Ela certamente não deixou de existir, mas perdeu o endereço, não é mais uma região, um lugar onde se reúnem os beatos e os felizes; ela existe na esfera interior de cada homem e não busca mais se realizar no mundo pela intermediação de estrelas, planetas e satélites.
Nenhum comentário:
Postar um comentário