Mais do que uma das principais manifestações artísticas do Rio de Janeiro, o samba traduziu a alma dos cariocas ao longo das décadas. Tanta propriedade não poderia deixar faltar um dia para chamar de seu. Neste artigo publicado em novembro do ano passado, você conhece um pouco mais do berço do samba e seus habitantes.
Um outro artigo é dedicado aos professores sambistas. Em “Samba nota 10”, a historiadora Helena Cattani a evolução do ritmo em sala de aula, onde as discussões historiográficas são embaladas nos versos das escolas de carnaval.
E já que tocamos no assunto, uma pitada de polêmica: a defesa de um historiador das escolas mais tradicionais contra as comerciais, no artigo “Tradição x Padronização”. A conferir.
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Nas quatro primeiras décadas do século XX, negros vindos da Bahia e da região cafeeira do Estado do Rio e judeus do Leste Europeu dividiam ruas, escolas e até casas no bairro Praça Onze, que abrangia dezenas de ruas do Centro do Rio de Janeiro. Os dois grupos tinham muito em comum: um passado recente traumático – escravidão para os negros e perseguições religiosas para os judeus – e religiões malvistas pela sociedade.
Sem profissões definidas, eles tentaram se adaptar à nova terra trabalhando nas ruas, vendendo mercadorias, produzindo boa música, boa comida, e exibindo um humor refinado. Para negros e judeus, a Praça Onze era ponto de referência, mas os dois grupos a ocupavam de maneiras distintas. Enquanto os negros mantinham instituições informais, sem sedes ou estatutos, os judeus criavam jornais, clubes, sinagogas e escolas. Sua vocação para a política formal e, muitas vezes, de oposição, era explícita, a se julgar pela quantidade de membros da comunidade filiados a correntes políticas brasileiras ou europeias. Os negros, embora organizados na festa, na religião e na solidariedade, não quiseram ou não puderam integrar partidos ou criá-los.
Em 1942, o bairro foi demolido para que a Avenida Presidente Vargas pudesse passar, mas entrou para a mitologia carioca como o berço das manifestações mais brasileiras: o samba, o choro, o carnaval. Muito se fala da Praça Onze em sambas clássicos e textos acadêmicos. Negros e judeus contam sua história, mas uns não falam dos outros quando reconstituem esse passado. “Como se um grupo fosse invisível para o outro”, comenta o escritor Sérgio Cabral. No entanto, há fotografias de judeus nos blocos de carnaval e relatos de negros fluentes em iídiche.
Sem profissões definidas, eles tentaram se adaptar à nova terra trabalhando nas ruas, vendendo mercadorias, produzindo boa música, boa comida, e exibindo um humor refinado. Para negros e judeus, a Praça Onze era ponto de referência, mas os dois grupos a ocupavam de maneiras distintas. Enquanto os negros mantinham instituições informais, sem sedes ou estatutos, os judeus criavam jornais, clubes, sinagogas e escolas. Sua vocação para a política formal e, muitas vezes, de oposição, era explícita, a se julgar pela quantidade de membros da comunidade filiados a correntes políticas brasileiras ou europeias. Os negros, embora organizados na festa, na religião e na solidariedade, não quiseram ou não puderam integrar partidos ou criá-los.
Em 1942, o bairro foi demolido para que a Avenida Presidente Vargas pudesse passar, mas entrou para a mitologia carioca como o berço das manifestações mais brasileiras: o samba, o choro, o carnaval. Muito se fala da Praça Onze em sambas clássicos e textos acadêmicos. Negros e judeus contam sua história, mas uns não falam dos outros quando reconstituem esse passado. “Como se um grupo fosse invisível para o outro”, comenta o escritor Sérgio Cabral. No entanto, há fotografias de judeus nos blocos de carnaval e relatos de negros fluentes em iídiche.
Inspirador do Zé Carioca
Pelo menos um personagem passou de uma cultura a outra e ganhou o mundo. O líder judaico e memorialista Samuel Malamud (1908-2000), em Recordando a Praça Onze, e o compositor e escritor Nei Lopes, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Negra, citam o Dr. Jacarandá, como era conhecido Manuel Vicente Alves Palmeira, negro alagoano que chegou ao Rio com 21 anos, em 1904. Tornou-se rábula, e circulava pela Praça Onze advogando para aquela população desassistida pelo poder público. Ele é tido como o inspirador do Zé Carioca, o brasileiro típico criado pelo judeu norte-americano Walt Disney (1901-1966) para o filme “Alô, Amigos!”. Não há registros de uma ida do animador à Praça Onze, mas o produtor hollywoodiano Hal Roach (1892-1992) – dos filmes de O Gordo e o Magro – esteve lá nos anos 1930 e saiu prometendo colocar aquele cenário em suas produções cinematográficas.
A ideia de Roach reflete o humor de judeus e de negros. Autorreferentes, implacáveis – mas não grosseiros – e antiautoritários, eles são capazes de zombar de todos, “inclusive de Deus”, como afirma a jornalista e historiadora Helena Salém. Embora houvesse a barreira da língua (o iídiche com sotaques diversos e o português influenciado pelos dialetos africanos), é improvável que não fizessem piadas, e que a segunda geração dos dois grupos, educada em português, não trocasse zombarias.
Mas é patente a falta de um marco judeu na atual Praça Onze, onde, além do Sambódromo, a cultura negra é lembrada pelo monumento a Zumbi dos Palmares e pela Escola Municipal Tia Ciata, em homenagem à mãe de santo que abrigava as primeiras rodas de samba da cidade. Talvez por terem permanecido na região, os afro-descendentes consideram o bairro como um local de seu passado, reivindicação incentivada pelo poder público. Se recordamos o passado em função do que vivemos no presente, que fatos de hoje empurram o relacionamento entre judeus e negros para o esquecimento? E que sentimentos e acontecimentos levaram os dois grupos a não falarem um sobre o outro durante quase 70 anos, desde a demolição da Praça Onze?
Pelo menos um personagem passou de uma cultura a outra e ganhou o mundo. O líder judaico e memorialista Samuel Malamud (1908-2000), em Recordando a Praça Onze, e o compositor e escritor Nei Lopes, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Negra, citam o Dr. Jacarandá, como era conhecido Manuel Vicente Alves Palmeira, negro alagoano que chegou ao Rio com 21 anos, em 1904. Tornou-se rábula, e circulava pela Praça Onze advogando para aquela população desassistida pelo poder público. Ele é tido como o inspirador do Zé Carioca, o brasileiro típico criado pelo judeu norte-americano Walt Disney (1901-1966) para o filme “Alô, Amigos!”. Não há registros de uma ida do animador à Praça Onze, mas o produtor hollywoodiano Hal Roach (1892-1992) – dos filmes de O Gordo e o Magro – esteve lá nos anos 1930 e saiu prometendo colocar aquele cenário em suas produções cinematográficas.
A ideia de Roach reflete o humor de judeus e de negros. Autorreferentes, implacáveis – mas não grosseiros – e antiautoritários, eles são capazes de zombar de todos, “inclusive de Deus”, como afirma a jornalista e historiadora Helena Salém. Embora houvesse a barreira da língua (o iídiche com sotaques diversos e o português influenciado pelos dialetos africanos), é improvável que não fizessem piadas, e que a segunda geração dos dois grupos, educada em português, não trocasse zombarias.
Mas é patente a falta de um marco judeu na atual Praça Onze, onde, além do Sambódromo, a cultura negra é lembrada pelo monumento a Zumbi dos Palmares e pela Escola Municipal Tia Ciata, em homenagem à mãe de santo que abrigava as primeiras rodas de samba da cidade. Talvez por terem permanecido na região, os afro-descendentes consideram o bairro como um local de seu passado, reivindicação incentivada pelo poder público. Se recordamos o passado em função do que vivemos no presente, que fatos de hoje empurram o relacionamento entre judeus e negros para o esquecimento? E que sentimentos e acontecimentos levaram os dois grupos a não falarem um sobre o outro durante quase 70 anos, desde a demolição da Praça Onze?
Local predileto da burguesia
Além da construção da Av. Presidente Vargas nos anos 1940, outra grande obra do século XX dificultou a localização do bairro e mudou radicalmente a sua paisagem: a construção da linha do metrô, nos anos 1980. Felizmente, o Rio de Janeiro é uma das cidades mais fotografadas do mundo, e sobraram imagens da antiga configuração da área. A praça, cujo nome homenageia a vitória brasileira na Batalha do Riachuelo, em 11 de junho de 1865, ficava à esquerda da entrada do Sambódromo e ia até o Canal do Mangue, que divide a Presidente Vargas em duas pistas. Em volta dela, as ruas tinham traçado regular, e as mais movimentadas, Senador Eusébio e Visconde de Itaúna, paralelas ao Canal do Mangue, desapareceram com o surgimento da avenida.
A região foi povoada por famílias burguesas que, no fim do século XIX, se mudaram para a orla da Baía de Guanabara e alugaram seus palacetes para os imigrantes pobres que chegavam ao Rio em grande quantidade. Segundo o Censo de 1906, 200 mil pessoas moravam lá, amontoadas em cortiços e casebres, às vezes com oficinas no térreo. O “bota-abaixo” dos primeiros decênios do século XX, que expulsou as populações pobres do Centro do Rio, não atingiu o bairro, talvez porque os proprietários dos cortiços tenham se recusado a ficar sem a renda dos aluguéis, ou devido à resistência dos moradores, que já haviam feito do bairro o palco das festas populares, como o carnaval e o Natal.
Com muitos bares e restaurantes, a praça tinha uma vida boêmia intensa. E ainda hospedava a zona de meretrício, onde se apresentavam músicos já consagrados, como Sinhô (1888-1930), ou que se consagrariam depois, como Benedito Lacerda (1903-1958) e Luiz Gonzaga (1912-1989). Tanto nos clubes judeus como nas casas dos negros, havia festas em profusão. As cerimônias religiosas dos descendentes de africanos eram seguidas de batuques. Nas rodas de samba e de choro, gêneros que haviam acabado de nascer, os músicos cariocas – nativos, como Cartola (1908-1980), ou de adoção, como o mineiro Geraldo Pereira (1918-1955) – apresentavam novas composições. No carnaval, a cada noite, 40 mil pessoas se espremiam na praça, multidão comparável à que vai ao Sambódromo. Era lá que desfilavam, até os anos 1930, as primeiras escolas de samba, como a Deixa Falar, do Estácio, a Estação Primeira de Mangueira e a Portela.
Os judeus tinham cerca de cinco jornais e um número parecido de clubes. “Os imigrantes solteiros e os que estavam sem família ficavam na Praça Onze até altas horas. Após o fechamento do comércio, faziam suas refeições no bairro. Na Praça Onze e nas proximidades, várias pensões forneciam refeições judaicas”, conta Samuel Malamud. Artistas da classe média, como Noel Rosa (1910-1937), Braguinha (1907-2006) e até o bem-nascido Mário Reis (1907-1981) – advogado e um dos donos da Fábrica de Tecidos Bangu – costumavam dizer que a música que encantava seus públicos vinha da Praça Onze.
Apesar de importante, a praça não foi poupada na reforma urbana promovida nos anos 1940 pelo prefeito Henrique Dodsworth (1895-1975), que deu origem à Avenida Presidente Vargas, bulevar que vai da Igreja da Candelária à Praça da Bandeira. A ideia de rasgar a cidade com uma larga avenida ladeada de prédios altos é atribuída ao suíço Le Corbusier (1887-1965), mentor da arquitetura moderna brasileira. Foram derrubados os imóveis de dois e três pisos, característicos da Praça Onze, mas a avenida idealizada não vingou, e até hoje a Presidente Vargas tem vastas áreas desocupadas.
A historiadora e arquiteta Fânia Fridman também atribui a demolição à necessidade que o governo brasileiro, simpatizante das ideologias antissemitas dos anos 1930 e 1940, tinha de conter os judeus que lá se refugiaram e que combatiam o governo em seus jornais, suas associações e seus clubes, como forma de autodefesa. Levando em conta o que dizia Samuel Malamud, a manobra deu certo, pois a comunidade judaica estava “integrada ao meio ambiente do país” e não reinavam mais “a dinâmica e o fervor dos idos anos da Praça Onze”. Aparentemente, os judeus saíram de lá sem reclamar.
Os negros, não. Os protestos vieram antes, no carnaval de 1941, com a marcha “Praça Onze”, de Herivelto Martins (1912-1992) e Grande Otelo (1915-1993), que lamentava o fim do logradouro e fez enorme sucesso: “Vão acabar com a Praça Onze/
Não vai haver mais Escola de Samba...”. O tempo aumentou o sentimento pela perda do bairro. Um dos hits de 1965, ano do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro, foi o “Rancho da Praça Onze”, de João Roberto Kelly e Chico Anysio. Nas décadas seguintes, a praça virou símbolo da resistência cultural dos negros, dita imortal no samba-enredo “Bumbumpaticundumprugurundum”, que deu a vitória no carnaval de 1982 ao Império Serrano.
Nos anos 1980, a sede administrativa da prefeitura foi para lá, e é chamada de Piranhão até pelas autoridades municipais – uma herança da picardia de outros tempos. Atualmente, a região abriga prédios residenciais e comerciais recentes, como a sede da Empresa Brasileira de Correios e o Teleporto. Há também áreas de entretenimento, como o Sambódromo e o Terreirão de Samba, que só são usadas na época do carnaval, para shows e por alguns raros circos, o que demonstra que a Praça Onze ainda não voltou a ser ocupada como nos tempos do Dr. Jacarandá.
Beatriz Coelho Silva é jornalista e autora de Palácio das Laranjeiras (Topbooks, 2008) e Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).
Saiba Mais
FRIDMAN, Fânia. Paisagem Estrangeira. Memórias de um Bairro Judeu no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.
MALAMUD, Samuel. Recordando a Praça Onze. Rio de Janeiro: Kosmos, 1988.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro. Coleção Carioca, volume 32. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio, 1995.
VELLOSO, Mônica P. “As Tias Baianas tomam conta do pedaço. Espaço e Identidade Cultural no Rio de Janeiro”. Revista Estudos Históricos, volume 3, número 6. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1990. p. 207-228.
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