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15 de dez. de 2011

Adeus, URSS

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Há 20 anos caía o chamado socialismo real. O colapso do projeto soviético e a abertura política e econômica do bloco comunista ficaram registrados nas lentes de cineastas russos da década de 1980



No dia 25 de dezembro de 1991, o mundo assistiu, perplexo, a uma imagem transmitida pelas principais redes de televisão do planeta: no mastro principal do Kremlin, em Moscou, a bandeira soviética era recolhida pela última vez e substituída pela bandeira russa. Era o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Depois de 74 anos, a Rússia deixava de ser a pátria do comunismo.


O processo de autodissolução da URSS surpreendeu o mundo por sua velocidade e intensidade. Imediatamente, intelectuais e comentaristas políticos de todas as partes entraram em cena para tentar explicar o fenômeno e, em geral, formularam uma interpretação simplista: tratava-se do colapso de uma estrutura de poder montada por Stalin nas décadas de 1930 e 1940, que dominou a União Soviética desde então e estava fadada ao fracasso. 

Essa linha de pensamento triunfou porque as pesquisas sobre a URSS sempre tenderam a estender o período stalinista a toda a história soviética, como afirma o pesquisador polonês Moshe Lewin. Segundo ele, esse tipo de abordagem, que continua hegemônico ainda hoje, foi influenciado por dois parâmetros de análise que limitam as reflexões historiográficas sobre o tema: o anticomunismo e a stalinização de “todo fenômeno soviético”. 

O estudo da sociedade soviética de outras perspectivas, porém, aponta para um quadro diferente. E um dos campos que mostram essa visão alternativa é o estudo da relação entre história e cinema nos filmes soviéticos produzidos na década de 1980, pois a imagem pode revelar transformações ignoradas em outros tipos de documentação. Nos últimos anos, pesquisas do gênero têm ganhado cada vez mais força entre os estudiosos do tema, principalmente nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra.
Durante toda a história do país, o cinema refletiu as diferentes fases pelas quais a sociedade soviética passou ao longo do século XX. Esse espelhamento pode ser percebido desde a fase revolucionária até os momentos finais da URSS, marcados pelas reformas políticas e econômicas implantadas por Mikhail Gorbachev a partir de 1985: a perestroika e a glasnost.


Antes do início dessas reformas, o Ocidente não tinha muitas fontes confiáveis para saber qual era a real situação econômico-social da URSS. Quando Gorbachev foi eleito secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 11 de março de 1985, a população esperava mudanças, mas ninguém – nem o principal dirigente soviético – sabia exatamente como aquela estrutura social seria reconstruída. No plano da cultura, as transformações foram mais rápidas do que na economia. As pessoas passaram a fazer publicamente aquilo que faziam às escondidas, e essas mudanças comportamentais se refletiram nas artes.

Gorbachev chegou ao poder aos 54 anos, o que fazia dele um jovem se comparado aos demais dirigentes do Partido Comunista, e sua eleição encheu a população soviética de esperança. Ele era diferente dos outros líderes: dava entrevistas espontâneas, fazia aparições públicas e dizia a verdade. O impacto dessa mudança de postura do secretário-geral do partido modificou toda a estrutura cultural do país.

O cinema foi diretamente beneficiado por essa transformação. Diretores como Nikita Mikhalkov e Andrei Tarkovski, por exemplo, experimentaram uma liberdade de criação que não se via desde 1934, quando a União dos Escritores Soviéticos impôs o realismo socialista como modelo único para toda a produção cultural do país. 

Durante os últimos anos da URSS, vários filmes fizeram críticas à burocracia e a outros aspectos negativos da sociedade soviética que até antes da perestroika e da glasnost eram proibidas. Um exemplo é Kin-dza-dza!, longa-metragem do diretor Georgi Daneliya lançado em 1986, que, de maneira muito sagaz, faz diversas referências anedóticas à realidade soviética da década de 1980.



No filme, dois cidadãos soviéticos, o engenheiro Vladimir Nikolaevich e o músico Gedevan, são teletransportados para o planeta Plyuk, na galáxia de Kin-dza-dza, onde a posição social dos habitantes é definida pela cor da calça que usam. Os plyukianos vivem em condições paupérrimas, e tudo é escasso no planeta, o que é explicitado pela paisagem desértica na qual a narrativa é ambientada.

O caráter crítico da obra salta aos olhos: a situação do planeta Plyuk é uma referência direta à incapacidade soviética em suprir as necessidades básicas de sua população na época devido à oferta insuficiente de bens de consumo não duráveis. Por isso, grande parte do enredo do filme gira em torno da disputa por palitos de fósforo, artigos considerados pelos nativos do planeta como uma espécie de moeda em um contexto de escassez.

Diante desse panorama, os personagens soviéticos têm sorte, pois um deles, Nikolaevich, que é fumante, tem muitas caixas de fósforos. Os palitos lhes permitem comprar dos extraterrestres um aparelho que os manda de volta à Terra. Em nenhum momento do filme os habitantes do planeta Plyuk oferecem a Nikolaevich e Gedevan a oportunidade de voltar de graça. Na maioria das vezes em que tentam negociar a compra da passagem de volta, a dupla não conta sequer com a boa vontade dos plyukianos. Muito pelo contrário: os soviéticos são roubados em diversas negociações.

O comportamento dos extraterrestres no filme é uma clara alusão à burocracia soviética. Na década de 1980, diante da escassez gerada pela baixa produtividade da indústria leve do país, os funcionários do Estado criaram um mercado negro de produtos negociados por meio de suborno, propinas e outras práticas ilegais.

As contradições produzidas pelo avanço tecnológico no planeta Plyuk é outra referência à realidade da URSS na época: ao mesmo tempo que viajavam grandes distâncias através do espaço sideral, os plyukianos eram incapazes de garantir um padrão de produção que suprisse as necessidades básicas da população. Trata-se de uma analogia direta com o programa espacial soviético, que consumiu uma enorme quantidade de recursos que poderiam ter sido destinados ao fomento de um mercado interno mais eficiente. Esse paradoxo se tornou uma das características da sociedade soviética da década de 1980, capaz de enviar homens ao espaço, mas incapaz de produzir gêneros de consumo essenciais. 

Outro filme que se tornou um marco da liberdade criativa proporcionada pela abertura da sociedade nos últimos anos da URSS é Anna dos 6 aos 18. Considerado uma das maiores obras cinematográficas sobre a formação da identidade nacional, foi lançado em 1993, já depois do fim do regime socialista. 

O longa-metragem foi concebido pelo diretor Nikita Mikhalkhov com o intuito de registrar como sua filha Anna interpretaria as mensagens produzidas pelo aparelho ideológico soviético. Para isso, ele fez cinco perguntas à menina durante 13 anos, de 1978 até o fim da URSS. 

Durante as filmagens, Mikhalkhov se surpreendeu com o grau de influência da propaganda do regime no comportamento de sua filha. É explícito o processo de formação da identidade nacional de Anna, que fica inconsolável quando a URSS deixa de existir, pois tem dificuldades em se identificar como uma cidadã russa e não soviética




Além das mudanças comportamentais de Anna, Mikhalkhov utilizou diversos exemplos de transformações socioculturais geradas pela perestroikae pela glasnost. Festas underground e ousados concursos de beleza tornaram-se comuns nesses anos. Assim, durante o secretariado de Gorbachev o sistema cultural soviético absorveu elementos da cultura ocidental sem nenhum tipo de referência à propaganda do marxismo-leninismo, uma atitude impensável até o começo da década de 1980. 

Anna dos 6 aos 18, porém, não se resume a efervescência cultural. O filme retrata bem as três fases que marcaram a perestroika: otimismo, descrédito e pessimismo. Para a maioria da população soviética, a autodissolução da URSS não levou a um aumento no padrão de vida nem trouxe, necessariamente, mais liberdade política. 

O poder que antes estava nas mãos do Partido Comunista foi distribuído entre seus antigos membros, que passaram a fazer parte de organizações criminosas com tentáculos nos mais diversos ramos da economia e da política. Atualmente, essas organizações controlam parte da mídia russa, o que dificulta a democratização da produção jornalística e a diversidade de opiniões no país. 

A conjuntura sociocultural da Rússia após o fim da União Soviética também pode ser analisada por meio da produção cinematográfica do período. Um exemplo de filme que revela o grau de empobrecimento e corrupção atingido pela Rússia durante a década de 1990 é Irmão, produção de 1997 que se tornou um sucesso de bilheteria no país. 

O longa-metragem do diretor Aleksei Balabanov mostra como a implantação da economia de mercado foi acompanhada pela proliferação de organizações mafiosas e por um processo extremamente fraudulento de privatização das antigas empresas estatais soviéticas. O resultado foi que o sonho do capitalismo não se concretizou na nova Rússia, o que talvez explique por que Gorbachev é tão idolatrado no Ocidente e tão criticado em seu próprio país.




Fonte: História Viva

2 comentários:

Dendê Socialista. disse...

Por favor, coloque os créditos!

Rafael disse...

Abaixo dos posts coloco sempre a fonte para que seja acessada a fonte original.

Obrigado pela visita!

Rafael Lapuente